Virtudes Seculares no Treino de Mindfulness e MBSR
Desde que o treino de mindfulness começou a ganhar expressão no Ocidente – muito graças ao Programa de 8 semanas Mindfulness-Based Stress Reduction (MBSR) e consequente validação cientifica – começou também a despontar uma discussão. A discussão surge em torno de uma dimensão essencial presente nos ensinamentos budistas para além do cultivo de mindfulness – a ética. Nos ensinamentos budistas, mindfulness surge enquadrado com uma forte abrangência de treino de conduta moral e ética.
Tal como está estruturado, o programa MBSR tentou trazer parte dos conceitos fundamentais do treino meditativo budista, com uma linguagem secular mas sem o treino de preceitos éticos, ou apenas de forma residual. Estes preceitos éticos no caminho budista são considerados essenciais para um efetivo treino da mente. Os preceitos têm o papel de proteger o estado da mente das consequências nefastas do uso de palavras ou ações de cariz imoral. Para além disso, apoiam a mente e o coração a inclinar-se para qualidades que realizam o potencial humano. Qualidades tais como a compaixão ou a sabedoria. A dimensão ética no treino budista vem do reconhecimento de que há uma causalidade. Causar sofrimento a outros seres, traz inevitavelmente como retorno, sofrimento ao próprio autor da ação. É assim a natureza da mente e do coração.
Neste debate, surgem muitas vezes exemplos da aplicação do treino de mindfulness com finalidades pouco éticas. É o caso da utilização de mindfulness no treino de soldados no Exército Norte-Americano. No limite poderemos ter um franco-atirador (sniper) cujo treino de mindfulness auxilia a tornar-se mais eficiente a tirar a vida a outros seres-humanos.
Mas nem precisamos de ir tão longe. Podemos imaginar uma situação em que uma empresa pretende oferecer treino de mindfulness aos seus colaboradores, com motivações pouco éticas. Por exemplo, para conseguir “espremer-lhes” um pouco mais de produtividade, ou para que consigam gerir níveis elevados de ansiedade, inerentes a um ambiente de trabalho tóxico.
Pessoalmente, acredito que o treino de mindfulness expande o nível de consciência nas várias dimensões de vida e aumenta a sensibilidade estética e ética de quem o pratica. A minha opinião é a de que o treino de mindfulness pode ser uma espécie de cavalo de Troia benigno, levando aos ambientes desprovidos de preocupação moral e ética, esta consciência que visa minorar o sofrimento humano.
Ainda assim, considero que os valores morais e éticos de respeito pela vida, deverão estar presentes de forma mais ou menos explicita no desenvolvimento de mindfulness. Pelo menos é dessa forma que o tento ensinar.
Apesar de a dimensão ética não estar explicitamente presente no treino de mindfulness MBSR, tal como proposto por Jon Kabat-Zinn, ainda assim ele tentou trazer de forma mais ou menos implícita, a preocupação com o desenvolvimento de valores e virtudes através do que ele designa as 9 atitudes fundamentais de mindfulness – mente de principiante, não-julgamento, desapego, aceitação, não-luta, confiança, paciência, gratidão e generosidade.
Uma Ética Universal no treino de Mindfulness
Ao refletir e investigar um pouco mais sobre esta questão deparei-me com um artigo muito interessante.
O titulo do artigo é: “Ética, Valores, Virtudes, e Forças de Caráter em Intervenções Baseadas em Mindfulness: Uma Perspetiva Cientifica da Psicologia”, Ruth Baer, Universidade de Oxford, Agosto de 2015. Publicado em ResearchGate.net
Muito resumidamente, o artigo propõe a definição de uma lista consensual de virtudes humanas e éticas de carater secular. A proposta de trabalho apresentada, propõe que o treino de mindfulness pode ser potenciado com um enquadramento ético, mas não necessariamente através do código de preceitos da religião budista.
Peterson and Seligman (2004; see also Dahlsgaard et al. 2005), dois psicólogos da área da psicologia positiva, fizeram um estudo abrangente com base em literatura histórica e contemporânea para tentar definir virtudes humanas universais. O objetivo foi definir uma lista que possa ser transversal e secular. Trabalhando com uma vasta equipa de colaboradores durante 3 anos, estes 2 psicólogos estudaram textos filosóficos e espirituais de culturas antigas que reconhecidamente tiveram uma influência duradoura na civilização humana e que apresentaram formulações especificas da natureza da virtude humana.
Estes textos incluíam os ensinamentos de Confúcio coligidos nos Analectos; as virtudes do Taoísmo descritas no Tao Te Ching; as virtudes budistas enumeradas no Nobre Caminho Óctuplo, nos cinco preceitos éticos e nos quatro Brahmaviharas; as virtudes hindus descritas no Bhagavadgita; as virtudes atenienses descritas por Platão em A República e por Aristóteles na Ética a Nicômaco; as virtudes judaico-cristãs descritas nos Dez Mandamentos, nos dois livros dos Provérbios e na Summa Theologiae de S. Tomás de Aquino; e as virtudes islâmicas discutidas por Alfarabi nos Aforismos Selecionados.
Do cruzamento de todas estas fontes, chegaram a uma convergência em 6 virtudes centrais reconhecidas consistentemente como necessárias para um bom carater humano. A saber: SABEDORIA, CORAGEM, HUMANIDADE, JUSTIÇA, TEMPERANÇA e TRANSCENDÊNCIA.
Peterson e Seligman (2004) identificaram também diversas forças de carater através das quais estas 6 virtudes centrais poderão ser alcançadas ou expressas.
Virtudes Centrais |
Forças de Carater |
Sabedoria |
Criatividade (originalidade, engenho) |
Coragem |
Valentia (valor) |
Humanidade |
Amor |
Justiça |
Cidadania (responsabilidade social, lealdade, cooperação) |
Temperança |
Perdão (compaixão, misericórdia) |
Transcendência |
Apreciação do que é belo e excelente (assombro, maravilhamento, elevação) |
Fica assim disponível esta possibilidade interessante, de trazer ao treino de mindfulness uma dimensão ética e de desenvolvimento de potencial humano, de forma secular e universal.
Na minha opinião, existe muito potencial em enquadrar o treino mental de mindfulness com estas virtudes e respetivas forças de carater. Isto irá reforçar a qualidade de relação estabelecida com atenção plena no momento presente, o que por sua vez reforçará as virtudes e forças de carater. Cria-se assim um ciclo virtuoso que se autorreforça.
Filipe Raposo
Maio 2025