Meditação, Mindfullness e Autocompaixão

Paradoxos no Caminho

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Paradoxo refere-se à circunstância, que conjuga diferentes aspectos da realidade aparentemente antagonistas ou inconciliáveis. A sua observação ou experimentação desafia o pensamento lógico e a racionalidade.

Os paradoxos foram desde sempre encruzilhadas que ajudaram ao progresso do conhecimento cientifico, ao debate filosófico ou à progressão no caminho espiritual.

De uma forma ou de outra, pela sua importância, os paradoxos que aqui trago, têm sido apontados desde sempre por vários sábios da humanidade. Estes em particular chamaram a minha atenção, mas haverão outros certamente. São temas a encontrar ao longo do caminho da realização. Na sua maioria, são de pouco valor ou até incompreensíveis se olhados apenas da perspectiva linear da mente pensante. No entanto, a espiritualidade é um caminho que pretende trazer equilíbrio entre a razão e o coração. Sendo assim, e na medida em que o coração se vai abrindo à vivência de cada momento, cada um destes paradoxos vai deixando de o ser, para se ir tornando numa natural compreensão da realidade.

 
1 – O paradoxo de ir em direcção ao sofrimento para encontrar felicidade

Se queres encontrar paz e liberdade deves aprender a contactar a tua dor. Isto pode parecer contra-intuitivo e completamente contrário à nossa “programação biológica”, ou até mesmo bom senso, no entanto, é a grande sabedoria por detrás de todas as formas de psicoterapia. É a proposta apresentada pelo Caminho do Meio do Buda: Queres libertar-te? Muito bem, primeiro precisas de parar de correr atrás do prazer, mas também parar de fugir do desprazer. Deves permitir-te conhecer a fundo onde e de que forma sofres. Para te libertares do sofrimento causado pela tua ferida, deves começar por perceber onde ela se encontra, o que a causa, para então a poderes cuidar.

2- O paradoxo de só podermos realmente mudar, ou na verdade transmutar algo em nós, quando nos aceitamos por inteiro

Como dizia o psicólogo humanista Carl Rogers: “Não podemos mudar, não nos podemos afastar do que somos enquanto não aceitarmos profundamente o que somos.”

Muito no seguimento do paradoxo anterior, este propõe-nos que só quando acolhemos a nossa vulnerabilidade, só quando abandonamos a vontade de “eliminar” ou transformar as nossas facetas menos agradáveis é que abraçamos a nossa condição humana de imperfeição. Aí, paradoxalmente, criamos as condições favoráveis a ocorrer uma transformação, ou uma mudança na forma como nos relacionamos com a nossa “imperfeição”. Talvez aí descubramos, que o que parecia uma “imperfeição” encerra na realidade um grande recurso.

3 – O paradoxo do largar para ter

Quanto mais vazios de nós estivermos (numa perspectiva egoica e auto-centrada), mais caberá dentro de nós.

Quanto mais largamos as nossas expectativas em relação à vida, quanto mais flexibilizamos os nossos quereres, quanto mais largamos as certezas do que somos e do que temos que ser, mais nos sentiremos em comunhão com o mundo.

A verdadeira liberdade e contentamento provêm, não de ter um grande número de posses ou escolhas de caminhos, mas do cultivar de saciedade perante o que se é e se tem, momento a momento.

Como dizia o Venerável Ajahn Chah: “Um pequeno largar, uma pequena felicidade. Um grande largar, uma grande felicidade. Largar por completo, Iluminação.”.

 
4 – O paradoxo da simplicidade que leva à abundância

Há para muitos de nós uma confusão entre quantidade e qualidade da experiência.

Quando enchemos a boca em voracidade na busca de ter uma experiência intensa, o que de facto buscamos, é a experiência de saciedade e contentamento. No entanto, de boca cheia não podemos contactar a riqueza de aromas, texturas e subtilezas daquilo que ingerimos. Esta busca de intensidade parte muitas vezes de um lugar de vazio, ansiedade, compulsão, atordoamento dos sentidos.

É através de uma atenção plena (mindfulness) a cada elemento da nossa experiência, que é possível colher uma saciedade que não aprisiona. E claro está, que isto não é válido apenas para comida.

Tal como em muitos outros casos, o ditado popular que diz que “menos é mais” encerra sabedoria.

5 – O paradoxo de só “possuirmos” o amor que dermos

O amor é um verbo, e como verbo que é, requer uma continuidade de acção, dedicação, presença, permissão, nutrição. Amor tem mais de consequência do que de objectivo, tem mais de caminho do que de horizonte.

E é nesse aspecto, que ao doarmos quem somos, ao outro, ou aos outros, cultivamos amor. Quanto mais nos doamos, mais fortalecemos este amor.

Porque amor não é um objecto, nem sequer faz sentido falar de “possuir”, mas antes de nos darmos permissão para que ele flua em nós.

Como disse Eric-Emmanuel Schmitt: “Aquilo que dás é teu para sempre; O que guardas, perde-se para sempre.”.

6 – O paradoxo de estar comigo, para melhor estar com o outro

Já alguma vez se sentiu relembrado da necessidade de estar com outras pessoas, em particular de quem lhe é mais próximo, após passar um tempo a sós?

É como se ao nos retirarmos do mundo, redescobríssemos que somos seres de vinculo. Na verdade, o tempo que dedicamos a retirar-nos em introspecção, é tempo no qual reforçamos o vinculo connosco mesmos, e, ao revisitarmos a nossa paisagem interior, harmonizamos tensões internas e atendemos a necessidades essenciais. Cuidar do vinculo comigo mesmo, para depois melhor vincular com o outro de uma forma livre.

Por isso, termos momentos de exílio e de solidão, ajuda-nos a estarmos mais inteiros com o outro.

7 – O paradoxo de parar que leva a uma aceleração no sentido de mudança

Já alguma vez se sentiu em vertigem, a fazer muitas coisas sem pausa, a correr para cumprir uma agenda de loucos, preso a planos e conquistas que levam a mais planos, como um hamster preso numa rodinha? Provavelmente sentiu-se ansiosa(o), a perder a capacidade de sentir a vida, e sem grande sentimento de autoria ou liberdade existencial.

Paradoxalmente, nesses momentos urge parar. Parar leva a aceder a um espaço de criatividade, onde voltamos a orientar-nos, voltamos a reconhecer o que é essencial e como caminharemos para lá. Esta pausa está ligada com o ponto anterior – o viajar para dentro para depois ir para fora de um modo mais alinhado.

Parar é muitas vezes um catalisador e acelerador da mudança, no sentido em que enquanto corremos na direcção errada, continuamos a afastar-nos e a desacelerar a mudança que buscamos. Ou como dizia o filósofo Séneca: “Para um barco sem rumo todos os ventos são adversos.”

8 – O paradoxo de ganharmos liberdade com o compromisso

Quando nos comprometemos numa relação, ou na defesa de um valor, ou na mestria de uma qualquer arte ganhamos liberdade emocional. Na verdade, a falta de compromisso exige superficialidade. Ao permanecermos pela rama, a saltitar de coisa em coisa, vamos provando um pouco de tudo sem de nada conhecermos a verdadeira essência. A superficialidade é sinónimo de dispersão, enquanto a profundidade traz foco. Há tempo sem duvida para experimentar, mas ao encontrarmos o que se alinha connosco, importa vincular. Um maior compromisso permite uma maior profundidade, e desta profundidade surge a realização e o florescimento do nosso potencial. Nesse sentido, o compromisso traz a liberdade para se poder ser quem se é.

9 – O paradoxo do ser e do fazer

É importante aprendermos a repousar no ser, abandonando todos os afazeres. Podermos habitar o momento presente com equanimidade, sem dualidade, observando os fenómenos da realidade, sem nos envolvermos pessoalmente. Esta possibilidade leva a uma menor resistência à realidade. Menor resistência, significa menor atrito, ou se quisermos menor sofrimento.

No entanto, a interdependência implica que o ser humano esteja envolvido no seu contexto mais alargado, quer queira ou não. Até a decisão da não-acção, acaba por ser uma escolha, escolha essa com consequências.

Isto significa que estes dois modos – o ser e o fazer – são na verdade duas formas de acção de qualidades diferentes. O ser como uma acção intencional e consciente de abertura à experiência de estar vivo, na qual nos harmonizamos de forma hábil ao que o momento nos solicita. Já o fazer, é quase sempre uma acção resultante de uma causalidade egoica (por vezes sem consciência da intenção), e muitas vezes envolvendo algum nível de resistência ao que a vida está a ser.

10 – O paradoxo da finitude e da infinitude no ser humano

Parece-me que todas as tradições espirituais, apesar de variar a forma da mensagem, falam acerca destas duas dimensões no homem. Uma dimensão mais óbvia – a da finitude, a partir da qual a esmagadora maioria de nós opera e olha para a vida. Esta é a dimensão na qual somos seres com uma existência num espaço e tempo finitos. Esta é a dimensão por vezes referida como mundana, na qual operamos muito condicionados pela nossa construção egoica.

Depois há uma outra dimensão que transcende o mundano, e que por isso diz respeito à infinitude. A partir desta dimensão espiritual, os conceitos de espaço e tempo são transcendidos. Nascimento e morte são apenas transições num continuo que sempre foi e sempre será. Quando sintonizamos com esta dimensão de infinitude, tornamo-nos numa expressão da consciência pura, do amor e da compaixão.

É curioso notar, que precisamos da dimensão de finitude para acedermos à infinitude. O caminho de transcendência é realizado através da aprendizagem e crescimento na dimensão mundana.

11- O paradoxo de aprender a morrer para melhor viver

A cultura ocidental tem feito um péssimo trabalho no sentido de nos ajudar com este paradoxo. A morte tem sido o grande tabu na nossa cultura. Evitamos lembrar que existe, evitamos mostrá-la, evitamos tê-la por perto. No nosso intimo, o pensamento que cauciona isto é: sei que existe a morte, mas é uma coisa que acontece aos outros, não a mim. Ou se me acontecer a mim, há-de ser daqui a muito, muito tempo, quando for um velhinho de noventa anos. Ora isto é confundir um desejo, com a natureza da realidade. E assim passamos a vida a fugir da nossa própria sombra. No entanto, este terror continua a mostrar a cara quando menos esperamos, alimentando grande parte das nossas neuroses.

Em várias tradições espirituais – em particular no Oriente – há outra forma de lidar com a finitude. A morte é incluída em práticas, rituais e cerimónias de forma a tornar-se mais um aspecto da vida do dia-a-dia. Dessa forma, a morte deixa de aterrorizar, e torna-se algo tão natural quanto o nascimento.

Treinar-nos para morrer é uma prática de reconhecer a natureza da realidade, com a sua impermanência e contínua transformação. Prepararmo-nos para a morte, é como ir aprendendo a largar a vida em todos os seus aspectos. Ao mesmo tempo, a presença deste horizonte de finitude, dá um maior significado a cada momento de vida, pois sabemos o quão breve e preciosa é. Olhando nesta perspectiva, pode dizer-se que aprender a morrer é aprender a viver.

Como é para si abrir mão das suas conquistas? Como é para si abrir mão daqueles que gosta? Como é para si abrir mão da sua juventude e da sua saúde? E finalmente, como é para si abrir mão da sua existência?

A resposta a estas perguntas, ou melhor, a reacção a estas perguntas, dá-nos pistas acerca do quanto já aprendemos a morrer/viver.

Oxalá possamos todos ter a coragem para reconhecer e navegar estes paradoxos. Oxalá um dia os paradoxos se tornem algo tão natural para nós que cheguemos a perguntar-nos: Mas porque é que chamei paradoxo a algo que é tão natural?

Texto escrito em Janeiro de 2021

Filipe Raposo

Foto de Splitshire em Pexels

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