“Se uma onda apenas vê a sua forma, com o seu início e fim, terá medo do nascimento e da morte. Mas se a onda vê que é água e se identifica com a água, estará emancipada do nascimento e da morte. Cada onda nasceu e vai morrer, mas a água está livre de nascimento e morte”, Thich Nhat Hanh – comentário ao Sutra do Coração.
O relâmpago desponta da inevitabilidade, como a chama que segue o riscar do fósforo e que não pode mais conter a expansão ou o propagar de algo que quer ser mais.
Chega o momento em que é doloroso demais não se ser o que se é. O potencial imenso pressente uma brecha. Num só instante a fronteira torna-se permeável. Vislumbramos uma possibilidade de caminho e um horizonte promissor adiante. A fronteira treme de pavor. O seu irmão medo vem auxiliar e ergue muros ainda mais altos que antes. Do lado de fora fica todo o desconhecido. Mas o potencial não esquece o que viu, e, o que sente a rugir dentro de si é real. É lá, adiante, naquele horizonte que nos cumprimos, é lá que há respostas. É lá que as perguntas caem. É urgente encontrar expressão.
O que começou como um ponto de luz, uma curiosidade, uma voragem de vida, depressa começa a ganhar ímpeto e a rasgar caminho. A faca de luz atalha pelo firmamento com determinação. Ao início a torrente é vigorosa e errática, como se o tempo e o espaço lhe fossem curtos. Depois, a pouco e pouco, o éter resiste e trava o ímpeto. Percebemos que o caminho não é uma linha recta. Não é uma questão de querer muito, ou muito depressa. O que importa é aprender: contornando; retrocedendo; largando; aceitando ser trespassado. O fogo de Zeus dança e flui. Vai-se desenhando o caminho de menor resistência, aquele que melhor nos conhece e que menos se nos opõe. Em cada entendimento, em cada rendição, em cada perdoar, o relâmpago transmuta o que era estático, em amor, em vida. No cotovelo luminoso, no ziguezague, na bifurcação, revela-se mais um pouco de nós e deixamos também algo para trás. Possibilidades que não foram seguidas, outras vidas, outras pessoas.
O que era facho de luz indivisível, sôfrego na urgência de progredir, é agora ramificação. O potencial divide-se para se multiplicar, outra vez, e outra. Como os ramos de uma árvore, emissária da Terra no Céu, assim os braços do relâmpago, emissário do Céu na Terra.
Esta etapa cumpre-se no exacto momento em que Céu e Terra voltam a ser um só. Nesse instante, no último expirar, o túnel de luz completa-se e mostra-nos de onde viemos, para onde vamos, de onde nunca saímos, como se pudéssemos olhar através dos olhos da Vida que já foi e será. Todo o Universo iluminado em todas as direcções, sem possibilidade de sombra ou pergunta. Amor é tudo o que existe. É a dança de Shiva, a magia do Cosmos que prossegue. O que começou como um ponto, tornou-se flecha, depois arco, e finalmente círculo onde já não há princípio nem fim. A seu tempo, o círculo, cansado de tanto girar, retorna ao seu centro, esquece-se do que era e regride a um minúsculo ponto. Ponto, caminho, circulo, somos tudo isso e nada disso se chega perto do que somos, eterna expressão de potencial.
Assim é o mistério desta jornada. Aos nossos olhos um ápice apenas, um relâmpago que risca o céu. Em que será que difere o relâmpago que se lhe segue? E o seguinte?
Se te perguntarem há quanto tempo iniciaste o caminho, podes responder de duas formas: Podes achar que és este relâmpago, e, falar dos anos que tens levado a riscar o firmamento debatendo-te esforçadamente por progressão. Mas, poderás também ter a sorte de te lembrares que és potencial, que já foste, és e serás todos os relâmpagos. Que não há um centímetro desta Terra que não tenhas já batido. Que todos esses relâmpagos refulgem com a luz de um milhão de Sóis, iluminando o longo caminho que te levará sempre de regresso a Casa.
Filipe Raposo
Escrito em Fevereiro de 2017
Foto de Jonathan Bowers em Unsplash