Meditação Mindfulness, Autocompaixão, Psicoterapia

Carta da Mãe Natureza – Parte II

(Gostava de deixar claro que reconheço a tragédia e drama que vivemos. Em particular a dor dos que directamente foram afectados, e dos que serão afectados por esta pandemia. Não faço aqui a apologia do coronavirus ou sequer das catástrofes naturais. Lamento muito todo o sofrimento e angustia que estes tempos estão a trazer. Ainda assim, toda a crise traz oportunidades. Com este texto, convido o leitor a um olhar diferente, mais abrangente, menos antropocentrado, dos tempos excepcionais em que vivemos. Que possamos todos ficar a salvo. Que possamos todos emergir desta crise melhores seres humanos.)

 

E assim vi chegar o dia, em que as suas mãos, cansadas de tanto fazer, caíram, não mais atarefadas. E o seu corpo, a sua mente puderam enfim conhecer o repouso, a cura. Em todos os meus recantos celebrei. “, excerto do Livro da Mãe Natureza

 

Meu querido, entendo a tua zanga, vejo como sofres. Mas não procures a causa fora de ti. Não apontes o dedo, nem sequer declares uma nova guerra. Esse caminho esgotou-se. O dedo que apontas, será sempre à pessoa que tens ao espelho, e a causa não é outra, que não a forma como olhas o Mundo, como me olhas a mim. Teimas em combater mais um sintoma e recusas-te a ver que és causa e consequência. És o perpetrador, o polícia, o júri, o carrasco, a vítima. O que vejo é um náufrago a esbracejar, a afogar incontáveis outras vítimas.

Respira fundo. Deixa-me segredar-te mais algumas palavras de coração:

 

Continuas a achar que é teu esse ar que respiras?

Talvez agora que lutas por respirar entendas como é valioso o ar que respiras. Tomas por garantida cada inspiração e no entanto recusas-te a ver a tua poluição e o abate das minhas florestas.

Talvez agora seja mais claro para ti como tudo faz parte de mim, de nós. Tudo é um só sopro. O que entra nos teus pulmões, não é diferente do que sai dos meus, ou da chaminé de uma fábrica, ou do tubo de escape de um avião.

Agora que os motores pararam, o ar começa a tornar-se mais respirável. Ouves os pássaros a cantar novamente?

 

Estás preparado para abraçar a tua família maior?

Talvez este vírus tenha cruzado a barreira das espécies para te relembrar do teu lugar na família dos seres vivos. Relembra-te de honrar o teu legado, vive em ti o testemunho e sabedoria de uma longa linhagem de vida.

Ou talvez este vírus tenha vindo, para te relembrar, que estás a interferir com algo maior do que tu. És um recém-chegado à minha família e apesar de todo o teu conhecimento, todos os teus microscópios, telescópios, motores, transístores, máquinas e engenhocas, há muito mais que tu desconheces. Estás a ameaçar equilíbrios que ainda não compreendes e a destruir processos únicos de evolução que levei centenas de milhões de anos a aprimorar.

 

O que aprenderás com este medo?

Vi com curiosidade a forma como reages ao medo. Face a um inimigo invisível, alguns dos teus entraram em modo de sobrevivência e digladiaram-se por rolos de papel higiénico. Outros tentaram possuir uma vacina milagrosa apenas para os seus. Em boa verdade vi também os que se doaram para salvar vidas, os que se uniram, cooperaram, cantaram canções de esperança.

Acima de tudo, vi uma mobilização na direcção da sobrevivência. Talvez pela primeira vez, vi-te escolher a vida em detrimento daquilo a que chamas economia. Isto é um sinal muito animador para o futuro. Isto mostra-me que tens coragem para te mobilizares em larga escala.

De há uns anos para cá que te vejo com aparentes boas intenções e operações cosméticas no que chamas de ecologia, sustentabilidade, revolução verde e outros nomes que usas, para no fundo manteres tudo como antes. Reciclas o teu plástico, andas mais de bicicleta, compras biológico, mas na verdade não estás realmente disposto a ver toda a verdade, ou a abdicar das velhas fórmulas que te trouxeram até aqui. Tão pouco estás disposto a ensaiar outro tipo de relação comigo. É trágico que só quando vislumbras o precipício, consideras medidas tão drásticas e tão necessárias.

As perguntas que te deixo são: Quando esta ameaça passar, o que terás aprendido com este medo? Acreditarás que podes continuar como até aqui? Esperarás até que o próximo abismo volte a estar próximo, para então reunires coragem para a mudança? Terás a abertura de coração para finalmente te apaixonares por mim, e agires a partir da coragem, amor e sabedoria?

 

Ainda acredito em ti

Enterneci-me ao ver-te crescer. Acompanhei os teus primeiros passos até tomares consciência de ti. Senti orgulho quando acordaste para o Cosmos e te perguntaste: O que é tudo isto? Estou sozinho?

 

Não tenhas medo, não estás só.

 

És ainda um adolescente a brincar com fósforos na floresta.

Este é o teu ritual de passagem. Crescerás ou definharás.

A vida pede-te agora paciência, reconhecimento, humildade e responsabilidade. Pára de argumentar. Todo o crescimento requer dor.

 

Silêncio.

 

Fica quieto, não penses tanto, observa e escuta apenas. Menos é muito mais.

Respira. Notas como o ar está sujo e pesado? Prova a água dos rios e dos mares. Consegues notar como está envenenada? Sente a temperatura na pele. Percebes o calor? A tua, a nossa casa está a arder.

 

Sim, são lágrimas que me correm pela cara. Não te assustes pequeno. Tudo isto passará. Voltarei a respirar, e à minha superfície correrá água cristalina. Oxalá ainda estejas comigo.

 

Ainda acredito em ti. Sei que é nas crises que mostras a tua coragem, nobreza e valor. É esperança o que sinto neste momento. Que esta crise te ajude a encontrares a grandeza do teu coração.

Toma o exemplo da lagosta que instintivamente abandona a sua concha, para seguir o seu processo de crescimento. Melhor ainda, toma o exemplo da lagarta, e quando saíres deste teu casulo de reclusão, olha com novos olhos, voa com novas asas rumo a novos horizontes.

Não deixes de escutar a minha voz dentro de ti.

 

 

Texto escrito em Março de 2020

Filipe Raposo

Imagem: Liv Bruce, extraído de Unsplash

 

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