Meditação Mindfulness, Autocompaixão, Psicoterapia

Regresso a Casa

 

Bem lá no fundo de cada um de nós chora um órfão desamparado. Chora por ter tocado o divino e o ter perdido, ou pior ainda, por o ter esquecido. Nadámos no oceano das nossas Mães e sentimos emoções puras. Fomos Deuses a viver um amor cósmico sem fronteiras de espaço ou tempo, uma consciência luminosa anterior à estreiteza da palavra, à esquadria do pensamento. Viemos de um mundo de sonho e sensação, até nos precipitarmos da graça para a gravidade. Foi a nossa primeira morte. O trauma da experiencia vive ainda hoje nas nossas células como eco do nosso Big Bang. Literalmente, parir, vem do latim parere, que significa: dar à luz.

 

Desde a primeira inspiração até à última expiração pulsamos neste movimento vital de expansão e contracção.

Uma parte de nós não se aquieta com a queda em desgraça, e, perante o mistério teima em agitar-se com perguntas do género: Quem me trouxe aqui? Porque tenho um fim? Como regresso a casa?

Por entre as frestas dos nossos pequenos medos agita-se algo enorme, algo irracional e capaz de nos abanar a estrutura até aos alicerces – aquela cujo nome não ousamos pronunciar. Desde a perda da inocência que sentimos a espada de Dâmocles a pairar sobre nós, suspensa num único fio de cabelo. Fomos ungidos à nascença por aquela figura que observa cada gesto da nossa dança, à espera do passo em falso.

É mais ou menos com este peso dramático que encaramos a finitude na cultura ocidental. A morte é algo que todos concordámos em varrer para debaixo do tapete, esperando, entretanto, que ela se esqueça de nós. Depositámos numa figura maléfica todas as qualidades que consideramos contrárias à vida, como se a morte fosse exterior ao plano da vida.

 

Ensinaram-me desde pequeno que a esperança média de vida é de cerca de 80 anos, portanto, há uns anos atrás, quando o meu Pai morreu aos 59, senti-me enganado e injustiçado. Quando se perde um Pai ou uma Mãe, é inevitável sentirmos que estamos na linha da frente para a próxima leva. Acho que foi por esta altura que comecei a pensar com maior frequência no facto de que morrer é o que tenho de mais certo. Foi o início da desilusão com a morte. E também com a vida.

 

Segundo o psicólogo Pierre Weil, “A normose pode ser considerada como o conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir aprovados por um consenso ou pela maioria de pessoas de uma determinada sociedade, que levam a sofrimentos, doenças e mortes. Em outras palavras: que são patogénicas ou letais, executadas sem que os seus autores e actores tenham consciência da natureza patológica.

 

Tal como por vezes ocorre num processo de cura, olhar deliberadamente para algo caricaturado ou exagerado ao absurdo, ajuda a tomar consciência de um aspecto da realidade tomado anteriormente como normal, a tal normose de que falava Weil. Esta normose na relação que temos com a morte começou a aclarar-se para mim, quando um dia li um texto de opinião de um cientista que considerava a morte como uma limitação biológica, um erro cruel da natureza ao alcance do homem corrigir, ou uma doença que será um dia curada. Pareceu-me ver nisto negação da realidade e uma forma dualista de ver o mundo, do género:  homem vs. natureza, vida vs. morte e por aí adiante. Este tipo de pensamento é simplista e perigoso.

As consequências de tomarmos a Natureza como algo de que estamos separados estão à vista de todos. Este planeta está a viver a sexta extinção massiva de espécies, também designada como Extinção em massa do Holoceno. Tudo parece indicar que na base deste evento esteja o nosso comportamento irresponsável.

 

Não faz sentido querer a expansão da longevidade biológica, sem que esta seja acompanhada por igual maturidade existencial e de consciência. Não chega estender o pavio da vida. À nossa vela, há que dar o contorno do Amor e o entorno da Sabedoria.

É difícil prever o impacto que uma vida ainda mais longa teria, mas qualquer pessoa que já tenha lido o romance de José Saramago: “As Intermitências da Morte”, imaginará a trapalhada que levantaria, a possibilidade de sermos imortais. A ideia da busca de imortalidade está desde sempre presente no pensamento ocidental, desde o texto mais antigo da humanidade – A Epopeia de Gilgamesh –, datado do séc. XX a.C., à lenda do Santo Graal, ou ainda à busca da Fonte da juventude, criando mitos frequentemente explorados por toda uma indústria que nos promete saúde, beleza e longevidade.

 

Quando passamos algum tempo na Natureza e a contemplamos com o olhar certo, vimos todo o espectro da existência: o espetáculo da renovação, degradação, morte e renascimento. Numa palavra: impermanência. Um ciclo sem princípio nem fim que existe em todas as coisas, incluindo no nosso corpo. A cada sete a dez anos a quase totalidade dos átomos do nosso corpo são trocados por átomos “novos”. A cada mês temos uma nova pele e a cada três dias um novo revestimento gástrico. Portanto, mais coisa menos coisa, a cada década passamos literalmente por uma reencarnação. Por todo o nosso corpo, a cada instante, há morte e renascimento. Somos um microcosmos de um macrocosmos.

 

Os nossos átomos estiveram no interior de estrelas incontáveis vezes, e, a cada ciclo, fomos chegando um passo mais próximo da magia de nos contemplarmos pela primeira vez como seres cósmicos. Nada do que existe neste Universo habita fora de nós, pois nós somos dele inseparáveis.

Como dizia o filósofo Alan Watts: “…nós somos aquilo que todo o Universo está a fazer neste preciso espaço e tempo, tal como uma onda é algo que todo o oceano está a fazer aqui e agora…”. Uma perspectiva original e irrepetível do Cosmos a olhar para si mesmo. Somos seres únicos a observar a criação desde o seu exacto centro, pois todo o ponto é o centro exacto de um Universo infinito.

 

Há uma passagem do Livro Tibetano do Mortos que fala deste nosso carácter sagrado: “Ó nobremente nascido, ó tu de gloriosas origens, recorda a tua radiosa verdadeira natureza, a essência da consciência. Confia nela. Regressa a ela. É o lar.

 

Não será que o aceitar e integrar a morte, possa ser algo diferente dessa conquista de monumentos ao “eu”? Ou do acumular de experiências que têm no prazer o fim único, mas que não nos dão propósito existencial no longo prazo? Os grandes mestres da Humanidade intuíram essa possibilidade de pacificar a morte em nós, através de uma vida de integridade, alinhada com os nossos valores nucleares, com intenções responsáveis e compassivas, deixando a marca não em pedra, mas nos corações de quem tocámos e inspirámos. O que criarmos apenas para nós próprios morre connosco, o que fizermos ao serviço da Vida perdura.

 

Como disse um dia George Washington Carver, um botânico norte-americano que nasceu em escravidão: “O quão longe irás na vida, depende de seres terno com os jovens, compassivo com os idosos, apoiante dos que se esforçam e tolerante com os fracos e fortes, porque chegará um dia na tua vida em que terás sido todos eles.

 

Depois da perda do meu Pai comecei a realizar esta verdade. Passei a focar-me mais em como ele me tocou, em como não estaria aqui sem ele, no quanto me sinto grato porque o melhor dele vive ainda em mim. Abriu-se o caminho largo do abrir mão de ressentimentos, e, do perdoar, a ele e acima de tudo, a mim. É o caminho que continuo ainda a percorrer. Na verdade, o perdoar, não é outra coisa senão o acolher a vida tal como é neste instante, fruto de todos os instantes que o antecederam, e, abrir mão da esperança de um passado melhor.

O que nos define como pessoas não são as escolhas dos nossos pais, nem os momentos em que eles ficaram aquém do que precisávamos. Tenho vindo a descobrir com serenidade e paz como tanto do meu Pai perdura ainda em mim. Nas palavras, no jeito de falar, no jeito de olhar, na curiosidade e em tantas outras coisas.

Um dia vinha no elevador e ao ver no espelho o meu sorriso devolvido, pareceu-me reconhecer uma expressão familiar. Reparei como o meu olho esquerdo se fecha um nadinha mais do que o direito quando sorrio. Fui a correr para confirmar em fotos de família o que o coração já sabia. Era de facto o olhar do meu Pai. Ele tinha levado uma pedrada no olho esquerdo quando era criança e ficou quase sem visão desse lado. Por algum motivo assumi inconscientemente a mesma expressão no olhar. Talvez para me sentir mais próximo dele.

 

Li algures, que o destino de um homem só se cumpre por completo, quando toda a memória da sua passagem pela existência se tiver apagado. Quando todas as pessoas que nos conheceram ou ouviram falar de nós tiverem morrido, quando todos os objectos, registos e fotos tiverem sumido, como pegadas deixadas na areia ao vento, aí sim, o nosso propósito terá sido cumprido de verdade. Atrevo-me a acrescentar, que talvez o último reduto de oposição a esta impermanência seja o Amor que pusermos no mundo. Quando o vento apagar o nosso rasto, a magia da vida que arde de coração em coração como chamas a passar de velas para velas, essa continuará, ainda que sem o nosso nome ou o nosso rosto.

 

A minha história e a do meu Pai estarão para sempre entrelaçadas até cumprirmos o nosso destino, e, depois, quem sabe? Algo me diz que nos reencontraremos algures no caminho de Regresso a Casa.

 

 

Filipe Raposo

Escrito em Fevereiro de 2016

Foto de Gian D. em Unsplash

 

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