“Assim que esteja disponível uma fotografia da Terra, tirada desde fora… uma nova ideia, tão poderosa quanto qualquer outra na história libertar-se-á.”, Fred Hoyle, 1948
Os primeiros astronautas a orbitarem a Lua, a certa altura olharam para trás e contemplaram o planeta Terra. Ao fazê-lo, viram uma pequena esfera azul suspensa no meio da escuridão da noite. Esta visão a vibrar de vida, contrastante com a superfície pálida e desolada da Lua e o entorno negro e estéril, causou-lhes um grande impacto.
O assombro evocado por esta experiência, trouxe a estas pessoas a realização da verdadeira importância do santuário de vida que é o nosso Planeta. Quão frágil é o equilíbrio neste pequeno planeta à deriva no oceano do Cosmos. Tanto quanto sabemos, grande parte da vastidão do Universo é inóspito à vida. O planeta Terra é um verdadeiro oásis, fruto de incontáveis causas e condições favoráveis. Um verdadeiro jackpot cósmico.
Esta visão abrangente trouxe uma perspectiva ampla e uma visão de altitude sobre a interdependência, preciosidade e fragilidade deste ecossistema.
Depois destes primeiros testemunhos sucederam-se incontáveis relatos de outros astronautas, que ao contemplarem esta visão única do planeta Terra, deram conta de uma transformação na sua percepção da realidade. “Lá de cima” não se veem países, fronteiras, muros ou bandeiras. Não se distinguem religiões, línguas ou ideologias. Deixa de fazer sentido o “nós” e “os outros”.
Segundo estes relatos, ocorre um entendimento directo que vê para lá das construções culturais, das crenças individuais e colectivas. Há um discernir de como estamos todos a bordo da mesma nave espacial, fadados ao mesmo destino.
Este tipo de experiência de assombro a que se deu o nome de “Overview Effect”, ou efeito de perspectiva abrangente, foi estudado em laboratório por psicólogos da Universidade de Stanford. O que observaram, foi que este tipo de experiência, trouxe aos sujeitos do estudo uma sensação de que o tempo abrandara, ao mesmo tempo que quase instantaneamente os levava a transcenderem a sua agenda de objectivos autocentrados. Isto tornou-os mais pacientes, menos materialistas e mais disponíveis para se voluntariarem a ajudar outras pessoas. Em suma, o seu lado de cuidado afectivo e compassivo perante a vida floresceu.
Pudéssemos nós ter acesso, a semelhante perspectiva abrangente na dimensão temporal, e a nossa visão da realidade ampliar-se-ia decerto também significativamente. Como seria olhar para uma bolota e ver simultaneamente a semente, o rebento, o carvalho adulto, os ventos, o Sol, a água, a seca que o moldaram, e também a sua madeira já em decomposição? Como seria olhar para um ser humano e contemplar todos os seus instantes de vida, desde a concepção até ao momento da morte? Será que nos reconheceríamos no outro? Decerto que tal visão abrangente facilitaria um abrir de coração face ao trajecto de cada um de nós. Tal olhar daria conta de onde cada pessoa partiu, dos obstáculos e ajudas que recebeu, e por onde e como lhe foi possível caminhar por esta existência.
Como trazer então esta possibilidade de transformação ao comum dos mortais?
Parece que o nosso legado evolutivo, aliado à cultura dominante, nos continua a facilitar um olhar sobre o mundo desde uma perspectiva, por um lado, auto-centrada, por outro, dualista: os que fazem parte da tribo (nós) e os que não fazem (eles). A tribo aqui pode ir desde a pertença ao mesmo tom de pele, sexo, idade, ideologia, religião, nação, etc.
Este tipo de experiências em que é possível ampliar a visão sobre a realidade, parece permitir uma reavaliação existencial profunda e uma ampliação do círculo do “nós”. De repente o “nós” representa a fragilidade e interdependência de todas as formas de vida, enquanto o círculo do “eles” se vai esvaziando.
Desde Yuri Gagarin até ao dia de hoje, apenas 556 seres humanos tiveram o privilégio de viajar até ao Espaço e não é realista pensar que esta experiência possa ser proporcionada num futuro próximo a um número mais expressivo de pessoas.
Não estando imediatamente ao nosso alcance uma abertura de horizontes espaciais ou temporais, acredito que há uma outra forma de transcender a visão mais “estreita e literal” da vida. Uma forma talvez menos imediata, mas ainda assim com o potencial de trazer uma libertação profunda e duradoura.
A contemplação.
Somos uma porta para todo um Universo
É preciso ensaiar o olhar interior e exterior. Olhar, e olhar novamente, até ver.
A luz da consciência poderá ir desobstruindo a poeira que nos deturpa a visão, realizando em nós mesmos e nos outros, as incongruências, fraquezas e forças, de forma a ir superando os conceitos e desconstruindo as crenças que nos aprisionam. É um processo alquímico de ir aclarando e purificando as nossas intenções, transformando pouco a pouco as impurezas em ouro, polindo o coração até este brilhar.
Ao longo da história da humanidade, vários mestres espirituais se referiram ao tesouro do espírito, esta porta em nós, dimensão de eternidade de espaço e tempo.
Embarque na viagem a este instante, antecâmara para a vastidão. Uma viagem que leva ao reconhecimento do que aqui esteve desde sempre. No silêncio entre sons, no vazio entre pensamentos encontrará caminho e meta. Observe a respiração como se fosse a coisa mais preciosa deste mundo. Inspire, expire. Inspire, expire…
Filipe Raposo
Texto Escrito em Agosto de 2019
Imagem: “Nascer da Terra” – Foto tirada pelo astronauta Wiliam Anders da Apollo 8 em 24 Dezembro, 1968. Créditos da imagem: NASA