Meditação Mindfulness, Autocompaixão, Psicoterapia

O Espaço da Compaixão – Parte I

 

A compaixão é um dos princípios éticos fundamentais da convivência com os outros seres humanos e os restantes seres vivos. É uma força motivadora de comportamentos de entreajuda e reforço dos laços sociais. É uma qualidade que permite construir uma civilização que apoia o bem-estar físico e mental de todos os seres humanos independentemente das suas características físicas, mentais, posses materiais, religiões ou crenças. A compaixão está ao serviço da vida, e, tem sido considerada por vários autores como a força motriz por excelência no progresso humano.

 

E o que é ao certo a compaixão?

A compaixão é a qualidade de ver com clareza a natureza do sofrimento, reconhecendo que não estamos separados desta experiência difícil, permanecendo ainda assim com a fortaleza e vontade de criar as condições para que o sofrimento termine. Se essa compaixão for acompanhada por sabedoria, poderemos tomar a acção mais hábil a reduzir esse sofrimento, sem estarmos apegados ao retorno das nossas acções. Em suma, a compaixão leva-nos a sentir o estado subjectivo de sofrimento no outro e a querer fazer algo para aliviá-lo.

 

No budismo é colocada bastante ênfase, em cultivar a par e passo tanto a compaixão como a sabedoria, daí se referirem às duas qualidades como as asas de um pássaro que se equilibram e permitem que ele não caia. A sabedoria é o que garante que uma pessoa não se afasta do propósito altruísta da compaixão caindo nos seus inimigos próximos (a piedade condescendente, a pieguice ou sentimentalismo) ou inimigos opostos (o desprezo, o despotismo tirano e opressor, e, a exploração do sofrimento do outro). A sabedoria traz o discernimento de avaliar profundamente a essência de uma situação específica, sem perder de vista o contexto mais amplo em que se desenrola. A sabedoria é o que torna clara a acção (ou inacção) mais hábil para criar o espaço necessário a que o sofrimento se possa reduzir para o maior número de seres envolvidos.

 

A grande maioria das tradições religiosas, espirituais e contemplativas colocou desde sempre grande importância na prática da compaixão. Dos hieróglifos do Antigo Egipto à parábola do Bom Samaritano, do épico hindu Mahabharata aos sutras Budistas, passando por Confúcio, todos, de uma forma ou de outra, elaboraram no centro das suas práticas o que denominamos de “Regra de Ouro”. Na sua forma positiva: “Trata os outros como gostas que te tratem a ti”. Não menos importante é a sua forma negativa: “Olha para o teu coração e entende o que te causa sofrimento e sob nenhuma circunstância provoques esse sofrimento nos outros”. Há quem acrescente que a versão verdadeiramente correcta deveria ser: “Trata os outros como eles gostam de ser tratados”, uma vez que temos necessidades diferentes, vimos de culturas diversas e o que é bom para mim poderá não ser o melhor para o outro. A prática da “Regra de Ouro” implica transcendermo-nos, ao destronarmo-nos do centro do nosso mundo e ali colocarmos o outro. Aí poderemos experienciar o que significa ser humano e tocarmos o que a nossa essência tem de mais divino.

 

De um modo geral, o ser humano não tem conseguido expandir o seu grau de preocupação, para além do círculo da sua família ou da sua tribo, mas precisamos de expandir a empatia e a compaixão a um nível global por toda a espécie humana e todos os seres vivos, se queremos evitar o colapso dos ecossistemas a nível planetário. Somos neste momento mais de 7.200 milhões de seres humanos no planeta, a disputar recursos limitados e a matar-nos por diferenças de opinião, crença ou nacionalidade. Se não conseguirmos viver em consonância com a “Regra de Ouro” de forma global, com compaixão por todos os companheiros de espécie e restantes seres onde quer que estejam, quem quer que sejam, tomando-os como tão importantes quanto nós próprios, será difícil deixarmos um mundo viável para passar às próximas gerações. Na verdade, será necessário mais do que isso. Será necessário sentir compaixão por pessoas e seres que ainda não vemos a sofrer – as gerações que ainda não nasceram. Não têm ainda nomes, nem rostos, nem histórias comoventes. S.S. o Dalai Lama diz mesmo que “O Amor e a Compaixão são necessidades, não são luxos. Sem elas a humanidade não sobreviverá.”

 

A compaixão é reconhecida como valor nobre na nossa cultura. No entanto, os exemplos de elevação são a excepção e não a regra. Pessoas como Nelson Mandela, Martin Luther King, Ghandi, Oskar Schindler, Aristides de Sousa Mendes ou Jesus Cristo pagaram um preço elevado pela sua resistência moral na defesa do património ético da paz e compaixão, ao agirem contra as normas e cultura estabelecidas. O seu reconhecimento como heróis, símbolos ou arquétipos da nobreza do Homem surgiu posteriormente às suas acções. A nossa cultura não é propícia nem estimula este tipo de comportamento. A acção da compaixão e do comportamento altruísta implica muitas vezes não ceder à tentação do lucro rápido, ou de abdicar de obter ganhos para si mesmo, em troca do bem-estar dos outros. A maioria das culturas mundiais contêm o elemento de repressão através de um código de regras e correspondente sistema punitivo para alguns comportamentos que violam a “Regra de Ouro”, no entanto, a motivação positiva para este tipo de comportamento tem vindo maioritariamente da filosofia, da religião e das tradições contemplativas, o que se tem revelado insuficiente. É urgente criar uma cultura em que o valor da compaixão seja transversal a todas as crenças, ou teísmos, e, seja tão fundamental na educação quanto aprender a ler e a escrever. A compaixão praticada activamente, expandindo-se em círculos cada vez maiores, até abranger toda a vida deste planeta, pode ser o veículo para a realização de todo o nosso potencial enquanto espécie.

 

Filipe Raposo

Escrito em Outubro de 2016

Foto de Marco Bianchetti em Unsplash

 

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