Meditação Mindfulness, Autocompaixão, Psicoterapia

Intenção

 

À medida que Pigmalião burilava esquina após esquina da pedra nua, o coração tremia-lhe em exaltação. A cada toque do cinzel a determinação crescia, os seus quereres afunilavam, e, Galateia ganhava forma. Era como se ouvisse a pedra a gemer e a implorar o fim do cativeiro. Urgia destrinçar o belo do rude, e, durante dias e noites a fio, não comeu, ou tampouco se deitou para repousar. Quando finalmente não restou aspereza ou falha, Pigmalião sorriu e contemplou tamanha beleza. Os olhos não consentiam afastar-se da criação, pois toda a sua vontade fora empenhada no intento.

A mão direita tocou a coxa de Galateia, depois subiu pela nádega, levando todo o tempo do mundo até deslizar pelas costas. O toque aveludado e a sensualidade das curvas fizeram aflorar um desejo ardente no seu peito. Queria possui-la. A face ruborizou-se, e, por momentos acreditou com todas as fibras do seu ser que um beijo apaixonado seria correspondido.

Afrodite, deusa do amor e da beleza, que observava a cena, não pôde deixar de atender ao anseio deste coração inflamado. Quando Pigmalião tocou com os seus, os lábios de Galateia, sentiu calor humano. O milagre ocorrera. A intensidade do momento só poderia ser descrita por um grande poeta.

Usei esta interpretação livre do mito de Pigmalião e Galateia, para ilustrar, de uma forma muito romantizada, o poder da intenção e da vontade e a forma como estas se podem manifestar.

 

Mind over matter, ou a intenção projecta-se e a obra nasce

A psicologia inspirou-se no mito que acabei de trazer, ao cunhar o termo “Efeito de Pigmalião”. Este fenómeno está relacionado com o resultado benéfico de crescimento e auto-superação que alguém atinge, por lhe dirigirmos a nossa intenção ou expectativa positiva. Quando esperamos o melhor de alguém, essa intenção tende a criar as condições para que ele possa mostrar a melhor versão de si.

Também relacionado com o poder da intenção, está o conhecido efeito placebo. Supostamente, através deste efeito, uma pessoa atinge uma cura pela simples crença ou expectativa de que um tratamento a está a ajudar, ainda que esse tratamento seja fictício. Há também o caso oposto, do efeito nocebo, através do qual uma pessoa pode adoecer de forma espontânea, devido à expectativa de que algo a que foi sujeita, lhe causará dano, ainda que esse algo seja fictício ou sem real acção física.

A sabedoria popular fala dos males, atribuídos ao poder da intenção projectada noutra pessoa. É o caso do quebranto ou o mau-olhado, que parte de uma intenção não-benevolente (inveja, ódio, má vontade) dirigida a alguém, e que supostamente lhe provoca desgraça. Estará aqui a origem da tentativa de restrição à cobiça, patente no Antigo Testamento.

Relacionado também com intenção, recordo, como ao entrar numa igreja ou num templo, sinto por vezes uma transição para um espaço que me apazigua. Sinto aí naturalmente uma predisposição para a tranquilidade e benquerença. É como se os milhares de pessoas que por ali passaram – ao terem um diálogo interior onde a intenção se alinhou momentaneamente com amor e compaixão – tivessem deixado uma impressão positiva naquele lugar. Talvez um pouco o que é proposto por Rupert Shedrake na sua teoria dos campos mórficos.

Estranhamente, ou não, tudo isto parece ir de certa forma ao encontro do paradoxo que subsiste na física quântica há quase um século, o da dualidade onda-partícula. Uma serie de experiencias, das quais talvez a mais conhecida seja a experiência da dupla fenda, parecem apontar para o facto de que a expectativa do observador determina o resultado da experiência. Ou, de outra forma, existe na escala do infinitamente pequeno, um campo de potencial no qual a manifestação física só assume caracter definitivo quando existe uma consciência a observar.

Confesso que isto poderá soar a magia ou a conversa new age. No entanto, parece seguro afirmar, que há aqui uma ligação bidireccional ainda não inteiramente compreendida, entre a consciência e o mundo material.

 

A intenção, força motriz na existência humana

Há sempre uma intenção, mais ou menos consciente, por detrás das acções e das palavras, e, até por detrás dos pensamentos. Nem sempre é fácil avaliar a intenção por detrás da palavra ou gesto do outro. Por vezes, parece-me que até a nossa verdadeira motivação é fugidia, e, tende a mascarar-se de outras roupagens, sempre que não é conforme com a imagem que temos de nós.

A nossa mente-corpo, é um modelo vivo de interpretação da realidade, que em resposta aos estímulos sensoriais, e a uma causalidade construída por experiências passadas, nos vai trazendo sensações, emoções, sentimentos, imagens e histórias mais ou menos elaboradas. Esta interpretação da realidade é feita, em grande medida, através do filtro das nossas crenças internas.

Se “a invenção é filha da necessidade”, poder-se-á dizer que a intenção é filha da crença, já que as nossas crenças e modelos de interpretação de nós próprios e do mundo, tendem a moldar as nossas motivações. Por exemplo, se temos uma crença bem profunda de que somos superiores aos outros (narcisismo), tenderemos a pensar, falar e agir com intenções bastante autocentradas, instrumentalizando as pessoas à volta para atenderem aos nossos quereres. Se por exemplo, temos uma crença, de que o valor de uma pessoa está ligado à riqueza material que esta possui, então, as nossas motivações vão impulsionar-nos no sentido de dar tudo por tudo, para conquistar ou manter posses materiais e desdenhar pessoas e contextos desfavorecidos.

Uma vez que uma boa parte das nossas crenças se foi construindo muito cedo na nossa existência, e, não está consciente, é difícil compreender a real natureza das nossas intenções.

Podemos ver-nos como pessoas bem-intencionadas, altruístas e generosas, mas quantas vezes já tivemos um gesto para ajudar outra pessoa, quando bem bem lá no fundo, alimentávamos a esperança de colher mais adiante algum dividendo para nós mesmos, por mais pequeno que fosse?

Por vezes, pode também ocorrer o oposto, ou seja, podemos não ter uma imagem apreciativa de nós mesmos. Nesse caso, podemos até ter um gesto que parte de uma verdadeira intenção generosa, mas o crítico interno vem e semeia a dúvida dizendo-nos: “Não… só ajudaste porque queres ser aceite e ser visto como boa pessoa. A mim não me enganas…”.

Assim sendo, a medida de generosidade ou altruísmo de um gesto ou palavra, só pode ser determinado, conhecendo o lugar íntimo e profundo de onde partiu a motivação.

Isto leva-nos a outra questão, tão antiga quanto a do ovo e da galinha.

 

Determinismo e Livre-arbítrio

De onde brotam as nossas intenções? Elas serão completamente condicionadas, ou temos escolha? Ou, de outra forma, a nossa existência é meramente causal e pré-determinada ou possuímos livre-arbítrio?

Interpreto o determinismo e o livre-arbítrio da nossa existência, não como conceitos que se excluem. Parece-me antes que a natureza das nossas intenções, se situa algures num espectro contínuo entre as duas possibilidades, podendo no limite tender para uma delas.

Na polaridade que tende para o determinismo puro, operamos praticamente sem autoconsciência, e, somos movidos pela causalidade dos impulsos biológicos, herança genética, ambiente, toda a nossa construção psíquica, com os seus hábitos, padrões de reactividade, sistema de crenças e inconsciente pessoal e colectivo. Diria que esta forma de operar sem grande autoconsciência, representa a maioria dos outros seres vivos. Tragicamente, é o mundo do sonho acordado em que passamos boa parte das nossas vidas.

Na polaridade que tende para o livre-arbítrio, existe autoconsciência, com uma qualidade de atenção plena (mindfulness), discernimento e equanimidade, que tende a notar a realidade tal qual é, aqui e agora, com introdução mínima de distorção pela lente da personalidade, com as suas ideias, conceitos, julgamentos, exigências e dualismos. No limite, esta vivência pode aproximar-nos da dimensão de consciência para lá da mente conceptual e seus dualismos. Uma vivência na qual sujeito e objecto se aproximam, até se tornarem um só, havendo uma imersão total na experiência do real. Esta dimensão de consciência é como um espelho que tudo reflecte, mas que em nada é alterado pelo processo, e, é por isso incondicionado.

A proximidade à realidade tal qual é, traz uma compreensão viva da interdependência de todos os fenómenos; traz a compreensão de que não somos entidades isoladas, e, que de facto, estamos todos no mesmo barco, a debater-nos com a fragilidade e o fulgor da existência. Esta é uma compreensão que irradia de um coração que se abriu. Tal como é natural à abelha ser cooperativa e conceber-se enxame, assim, a partir desse lugar do coração e da sabedoria, as motivações surgem naturalmente tingidas com a qualidade de amor e compaixão.

O nosso grau de liberdade, expresso através da intenção, estará portanto intimamente ligado com o nosso alinhamento com a realidade, ou, de outra forma, com a nossa proximidade à natureza incondicionada da consciência.

 

Sementes de intenção

A intenção que surge na nossa consciência, é como uma semente que cai da árvore soprada pelo vento. O solo onde pousa, pode ser fértil e germinar algo a partir da intenção, como pode ser pedregoso e estéril e não haver aparentemente continuidade no processo. Ainda assim, solo que é estéril, passados dias, anos, ou quem sabe vidas, pode tornar-se terra nutritiva e frutificar. Assim parece ser com as intenções. Por vezes uma intenção surge em determinado momento da nossa vida, talvez sob a forma de um anseio ou de uma necessidade por atender. A autoconsciência presente nesse momento, poderá não ser a suficiente para trazer luz à intenção que surgiu. Ou a intenção pode ser mal interpretada, pode ser expressa de forma deturpada, ou simplesmente ignorada no meio das distracções e afazeres do dia-a-dia. E a semente adormece até que venha a Primavera da autoconsciência.

Importa também não desvalorizar o potencial de uma intenção, por mais pequena que esta comece. Dando-lhe as condições adequadas e o tempo necessário, a minúscula semente de mostarda, pode crescer e tornar-se numa planta frondosa de vários metros de altura.

Se parece haver uma intenção em jogo por detrás de tudo o que conhecemos, gostava de terminar este texto (que já vai longo) com uma proposta a quem leu até aqui.

 

No início desta etapa de existência, poderão ou não ter havido intenções a impelir-nos. Proponho tomarmos a nossa intenção inicial, ou a nossa centelha de vida, como a metáfora da nossa semente. Por outro lado, os nossos progenitores no momento da concepção, ou mesmo antes disso, tiveram uma expectativa em relação a nós. Tomemos essa expectativa como o solo da nossa semente. Agora, a pessoa que somos, com todas as qualidades e fragilidades, exactamente onde estamos, da forma que estamos – a nossa árvore.

Agora fecha os olhos por momentos e visualiza a semente, o solo, a árvore, e, deixa estas perguntas ecoarem dentro de ti.

Que semente fui?

Que tipo de solo recebeu a minha semente?

Que árvore é a minha?

 

 

Filipe Raposo

Texto escrito em Março de 2018

Imagem: Boris Vallejo – “Pygmalion and Galatea” 1989 Calendar Painting Original Art (1988)

 

Links sugeridos:

Consciência e física quântica:

http://www.bbc.com/earth/story/20170215-the-strange-link-between-the-human-mind-and-quantum-physics

 

As experiências de cristais de água do Dr. Masaru Emoto:

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