Recordo-me do meu primeiro beijo como se fosse ontem. Devia ter uns nove ou dez anos. Numa festa de aniversário com amigos da escola, a certa altura, fomos para um sítio mais escondido jogar ao bate-pé. De forma muito resumida, para quem não sabe, o bate-pé era um jogo muito popular nos anos 80, em que, à vez, eramos desafiados a beijar outra pessoa. Quando chegou a minha vez, abeirei-me da Rita. Sentia-me prestes a saltar para fora de pé. Ela também estava envergonhada. Se calhar também era a sua primeira vez. Fechei os olhos e dei-lhe um beijo na boca. Lembro-me de me sentir vivo e entusiasmado, como se tivesse atravessado uma daquelas pontes aterradoras que se viam nos filmes do Indiana Jones. Sentia-me noutra margem sem dúvida.
Lembro-me também da vez em que fui numa excursão ao Planetário. Estávamos às escuras numas cadeiras estranhas que reclinavam até ficarmos quase deitados. Havia um grande burburinho e a excitação era generalizada entre a criançada. Gradualmente, foi caindo a escuridão, e, o céu foi-se enchendo de pequenos pontos brilhantes que desenhavam figuras, ora aqui ora acolá. O som de vários “Uauuu!” ia preenchendo a sala, quando um senhor começou a falar das constelações. A constelação dos gémeos e a tragédia de Castor e Pollux, a constelação do Touro e o rapto de Europa, a constelação do Leão e a sua luta com o poderoso Hércules. Fiquei inebriado com tanta magia. De repente o meu mundo expandira-se incomensuravelmente. Senti-me ao mesmo tempo minúsculo, e, personagem numa grande aventura. Entendo hoje como aquele momento me acendeu a paixão pela astronomia, pela mitologia, e, pelo mistério de tudo o que está para lá do que se consegue compreender.
Acho que é esta mesma novidade do primeiro vislumbre, que me cativou e me tem levado a viajar para sítios desconhecidos. O que busco é o assombro de me sentir por instantes um peregrino em terras exóticas, a olhar para novas paisagens, novas caras, novos aromas, novas sonoridades. É como se ocorresse uma suspensão da interpretação, ou como se os conceitos que trago dentro, todas as narrativas em torno de “eu”, “mim “e “meu”, e, todas as malhas com que aprisiono a vida, se tornassem irrelevantes neste novo mundo.
Assumo, ainda assim um sabor agridoce, ao recordar estes momentos em que a vida valeu a pena. É com pesar que reconheço como o meu espirito se foi empobrecendo. Sinto que enterrei um tesouro, algures, a salvo, muito bem escondido. Depois cresci, enchi-me de certezas e fui perdendo a capacidade de me maravilhar com o mundo, a capacidade de reverenciar a magia da existência, como quando era criança e olhava cada coisa com a curiosidade e a entrega da primeira vez.
Fui lendo a enciclopédia da vida, em vez de a viver. Fotografei paisagens extasiantes em vez de as habitar com o olhar. Estudei e tracei rotas em mapas, em vez de me fazer ao caminho. Fiquei pela descrição do fruto exótico em vez de o saborear.
Regresso à Inocência
Será que o lugar do espanto, o lugar da magia das primeiras vezes se desvaneceu com a criança que fui? Será que o meu Peter Pan só pode voar quando a realidade externa é tão intensa ou exótica que me acorda desta anestesia dos sentidos?
No dia em que descobri a prática da meditação, entrei num caminho que me foi levando a uma resposta possível a estas questões. Foi nesse dia que me comecei a lembrar que me tinha esquecido do tal tesouro lá atrás. O tesouro do espírito.
O treino meditativo da sensibilidade dos sentidos é como uma reiniciação à realidade. A realidade em toda a sua complexidade, que é muito mais do que as nossas caixinhas habituais do “bom” e do “mau”, do “quero” e do “não quero”. A cultura actual destaca as nossas carências e estimula mentes famintas. Inutilmente tentamos preencher o vazio com uma crescente quantidade e intensidade de coisas, experiências e pessoas. Por contraponto, a experiência de saborear a verdade, sem mais, por mais ínfima e subtil que seja, sabe a abundância e a liberdade. Sabemos que assim é, para além de qualquer dúvida, quando o coração se alegra e sorri, e o corpo se enche de vida.
É urgente resgatar este olhar curioso e inocente do peregrino que um dia fomos. Este treino afectivo é também um resgate do encantamento pela beleza e frescura, que há no mais ínfimo detalhe da existência em cada instante. Prestar atenção com mente de principiante, como se a nossa vida dependesse disso. Porque de facto depende.
Tento todos os dias deixar o meu Peter Pan voar, nem que seja por alguns minutos, e, a cada dia, ele leva-me um pouco mais perto do tesouro. O tesouro do coração de principiante.
Filipe Raposo
Texto escrito em Maio de 2018
Foto de Annie Spratt, em Unsplash