(Gostava de deixar claro que reconheço a tragédia e drama que vivemos. Em particular a dor dos que directamente foram afectados, e dos que serão afectados por esta pandemia. Não faço aqui a apologia do coronavirus ou sequer das catástrofes naturais. Lamento muito todo o sofrimento e angustia que estes tempos estão a trazer. Ainda assim, toda a crise traz oportunidades. Com este texto, convido o leitor a um olhar diferente, mais abrangente, menos antropocentrado, dos tempos excepcionais em que vivemos. Que possamos todos ficar a salvo. Que possamos todos emergir desta crise melhores seres humanos.)
“Pedir-te-ei gentilmente que te detenhas. Depois ordenarei com um só berro: Pára! Silenciarás o teu ruído, e os pássaros ouvir-se-ão de novo. Ficarás recluso no teu próprio lar, com todo o tempo que sempre disseste não haver. Travarás amizade com o tempo e o silêncio… E quando finalmente saíres do teu abrigo, se o teu olhar tiver acumulado suficiente humildade e responsabilidade, poderás enfim reclamar de novo o nome de Ser Humano.”, excerto do Livro da Mãe Natureza
Meu querido, aquilo a que chamas inimigo invisível, eu chamo consequência e oportunidade. Se te seguro agora pela mão, é para que possas parar, para que possas olhar e ver. Estás em rota acelerada para um abismo e tragicamente não vais só. Esta pandemia é apenas um prelúdio do que aí vem.
Estás numa encruzilhada existencial. Alguns sinais no caminho poderão apontar-te oportunidades que poderás considerar agarrar. Senta-te aqui ao meu colo, abre o coração a estas palavras que te vou segredar:
Quem és tu?
Quem és tu, agora que o ruído sossega, os afazeres se reduzem, agora que as correrias já não são uma possibilidade? Aproveita esta pausa que te proporciono para saíres da preguiça de estares sempre a fazer coisas. Será que te conheces quando não estás em movimento? Sabes quem és sem a validação exterior? Quem és tu quando não estás a traçar mapas e planos para o grande projecto a que chamas vida?
Onde colocas o teu coração?
Usa esta oportunidade para sentires onde estão os teus compromissos. O que valorizas? Onde investes a tua energia? Onde colocas o teu coração? Levanta os olhos por um momento. Ainda estás no teu caminho? Será que alguma vez estiveste? Será que percorres o caminho de outro alguém? Terá o teu coração em algum momento tocado o meu?
Necessitas sentir o que se agita em ti para te conheceres. E só sentirás se parares.
Como está a saúde das tuas relações?
Aproveita este tempo em isolamento forçado para reveres a qualidade das relações que foste construindo. Não importa a quantidade de amigos virtuais que possas ter. A palavra chave aqui é qualidade. Começa pela pessoa com quem passas a maior parte do tempo. Tu. Como te relacionas contigo mesmo? Como te relacionas com o teu círculo de pessoas mais próximo?
Em última instância, a forma como te tratas e respeitas a ti mesmo reflecte a forma como tratas o outro, a forma como me tratas a mim. Vai ao teu encontro aí onde estás e aprende a ser o teu melhor amigo. Há vida em ti que aguarda ansiosamente por este reencontro.
Agora sem os adereços habituais, os entretenimentos, os eventos sociais e o ruído da multidão estarás “despido”. Serás tu e a tua vulnerabilidade perante o outro. O isolamento trará aprofundamento. Terás aqui uma prova de fogo, com o potencial de revelar o que é verdadeiro e o que é circunstancial ou frágil. O desafio exigir-te-á que cultives uma comunicação compassiva, o respeito pelo outro e a gentileza.
De que tamanho é o teu circulo?
Este vírus levou-te ao isolamento. Talvez assim te relembres que és uma espécie gregária que precisa da tribo. Agora que não podes abraçar e tocar no outro, talvez te recordes da importância dos afectos, da importância de cuidares do teu grupo e de abraçares o bem colectivo. Recorda-te que essa angústia, esse medo que sentes, é o que te liga a toda a tua tribo. Nos momentos alegres é fácil aventurares-te longe dos teus, talvez até esquecê-los. Mas é na travessia dos vales escuros da tua existência que és chamado a renovar esta aliança.
Os momentos de ameaça e crise podem revelar-te o tamanho dos teus laços de afiliação. Tens aqui a oportunidade de descobrir um caminho que contemple uma perspectiva mais abrangente. Vais tomar o caminho conhecido de salvar apenas o teu umbigo? Vais açambarcar o máximo que puderes para a tua família? Vais fechar as fronteiras sem acudir aos teus vizinhos? Ou ensaias a cooperação e a confiança no outro? Veremos até que ponto construíste de facto uma comunidade global. Até que ponto consegues unir a tua tribo em tempos de ameaça.
De quanto preciso?
A tua tribo padece de cansaço crónico. Aproveita este antídoto, ajudar-te-á a parar.
Ao tomares este remédio, a tua hiperactividade, a tua hiperprodutividade e o teu hiperconsumismo entrarão em quarentena.
Agora que paraste de correr, observa. Qual o sabor da tua existência? Será que corres assim tanto, para teres tanto, porque sentes tão pouco? Vejo em ti um vazio de significado. Um vazio de desconexão com a tua tribo. Desconexão comigo.
Deixa para trás o acessório, o sofisticado, o complicado. Foca-te no essencial: saúde, amor, conexão, natureza, espiritualidade.
Simplifica, abranda e escuta-te. Escuta-me. Dentro de ti falo na voz da abundância. Aquilo que tanto procuras também está à tua procura.
O que dirás às futuras gerações?
Observo com curiosidade como este vírus tem sido benevolente com as tuas crianças e jovens. Encorajo-te a cultivares o mesmo olhar compassivo e esperançoso pelas novas gerações. Acredito que novas possibilidades de caminho poderão vir daqueles que mais têm a perder, daqueles cujas mentes ainda não estão cheias de certezas, daqueles que ainda se permitem maravilhar com a minha presença. Refiro-me às novas gerações, mas também às gerações que ainda não nasceram. Uma multidão de rostos que caminham lá atrás na caravana e que poderão não encontrar um mundo habitável. Que palavras encontrarás para lhes explicares que não poderão sonhar? Como aplacarás a sua cólera?
Este texto terá continuação numa segunda parte…
Texto escrito em Março de 2020
Filipe Raposo
Imagem: cortesia da Estação Espacial Internacional, extraído de www.nasa.gov