Meditação Mindfulness, Autocompaixão, Psicoterapia

Não-Julgamento

meditação mindfulness 3

O não-julgamento é uma atitude importante no treino de mindfulness. Na verdade, é parte da definição operacional de mindfulness tal como proposto por Jon Kabat-Zinn.

Quando começamos a meditar, e paramos para observar a nossa mente, começamos a reparar como temos opiniões e entendimentos acerca de tudo. Na verdade a nossa mente julga tudo a toda a hora. “Gosto disto”, “Não gosto disto”, “Isto é bom”, “Isto é mau”, “Esta pessoa é bonita”, “Esta pessoa é feia”, e por aí fora.

Neste âmbito, a proposta de não-julgamento, não vai tanto no sentido de deixarmos de julgar a nossa experiência, isso não parece ser possível. Vai mais no sentido de tomarmos consciência quando estamos a emitir julgamentos, e não levando esses julgamentos tanto a sério. Não vamos julgar a mente julgadora, isso não ajuda de todo. Quando notamos um julgamento, simplesmente não nos identificamos, não alimentamos nem lutamos contra essas categorizações. Deixamos ir (deixamos estar) o julgamento, e assumimos deliberadamente uma posição de imparcialidade e abertura, observando o fluxo de experiência no seu fluir, e observando também as nossas reações a esse fluxo.

Esta observação revela-nos com frequência até que ponto a nossa mente tem uma tendência para a dualidade. Ou seja, a nossa mente está condicionada para olhar para as coisas na perspetiva: branco ou preto; gosto ou não gosto; quero ou não quero; certo ou errado, nós e os outros…

 

… a proposta de não-julgamento, não vai tanto no sentido de deixarmos de julgar a nossa experiência, isso não parece ser possível. Vai mais no sentido de tomarmos consciência quando estamos a emitir julgamentos, e não levando esses julgamentos tanto a sério.

 

Esta perspetiva estreita da realidade aprisiona-nos, uma vez que frequentemente a realidade é muito mais complexa do que pares de opostos. Na maioria dos casos há um espetro contínuo de possibilidades não contempladas. Como nos dizia Rumi: “Para além das ideias de certo e errado, existe um campo. Encontro-te lá.”. O que Rumi nos está a propor, é este conceito de não-julgamento. Está a propor-nos uma abertura à realidade das coisas tal como são, uma recetividade à complexidade da vida, ou por outras palavras: cultivar discernimento, clareza, sabedoria. É fácil de ver como o não-julgamento é uma atitude próxima da mente de principiante.

 

Como se formam estes julgamentos?

Ao observarmos a mente, na base destes julgamentos, parece haver um condicionamento com origem na memória de experiências passadas, de conceitos, crenças, preferências e conclusões estabelecidos anteriormente.

Para além deste condicionamento cognitivo, parece haver também um outro condicionamento tão ou mais poderoso – o condicionamento biológico. Este condicionamento é uma programação biológica intrínseca na maioria das formas de vida e tem como propósito a sobrevivência. A programação é simples e baseia-se no “tom afetivo”, ou “tom hedónico” (feeling tone/vedanā) que surge no contacto entre os cinco órgãos dos sentidos mais a mente, com os objetos do nosso mundo interior ou exterior.

Quando um fenómeno interno ou externo é percecionado como agradável queremos mais, queremos que perdure e agarramos com avidez, daí julgarmos o acontecimento como algo “bom”.

Quando um fenómeno interno ou externo é percecionado como desagradável, rejeitamos, lutamos contra, afastamo-nos, queremos que termine e sentimos aversão, daí julgarmos o acontecimento como algo “mau”.

Quando um fenómeno interno ou externo é percecionado como nem agradável nem desagradável, temos uma tendência para ignorar e excluir do nosso campo de consciência, ou uma tendência para nos sentirmos aborrecidos, daí julgarmos o acontecimento como algo “neutro” ou “irrelevante”.

O julgamento é como um véu que filtra e dá cor a tudo o que experienciamos. O julgamento torna-se um obstáculo à visão das coisas tal como são, pois a realidade é filtrada pelas nossas opiniões, preferências, expetativas, preconceitos e sentimentos.

Importa também tomar consciência de um tipo particular de julgamento, o autojulgamento que leva à autocritica. Aquela voz interna que constantemente nos aponta quando falhamos ou ficamos aquém do que gostaríamos. Por vezes tendemos a tratar-nos de uma forma rude e cruel, como nunca trataríamos sequer pessoas com quem não simpatizamos. Este é um hábito frequente para muitos de nós, um hábito que inflige muito sofrimento em si mesmo. O antídoto para a voz interna critica é a autocompaixão.

 

O julgamento torna-se um obstáculo à visão das coisas tal como são, pois a realidade é filtrada pelas nossas opiniões, preferências, expetativas, preconceitos e sentimentos.

 

Treinar o não-julgamento, passa então por notar os julgamentos que surgem na nossa mente – sejam pensados ou sentidos – e dar um passo atrás, desidentificando-nos desses julgamentos, não os tomando como algo pessoal. O que resulta é uma visão mais ampla, mais em sintonia com a natureza da realidade no momento presente.

Esta perspetiva abrangente é o que nos propõe não só o treino de mindfulness como de resto várias tradições de sabedoria da humanidade. Esta visão abrangente é o que por vezes surge perante experiências de assombro, em que por momentos transcendemos a nossa visão estreita e condicionada.

 

Termino este texto com um pequeno conto, que nos aponta para a importância da atitude de não-julgamento.

 

Sorte ou Azar?

Era uma vez um agricultor pobre que vivia numa aldeia, na companhia do seu filho adolescente. O agricultor tinha um cavalo belo e forte, que o ajudava nos trabalhos do campo.

Um dia, o animal desapareceu. A notícia correu a aldeia.

Os vizinhos, que apreciavam muito o homem pela sua honestidade, apressaram-se a consolá-lo:

– O teu cavalo foi roubado. Que desgraça a tua. Que azar!

O agricultor não pareceu muito preocupado. Agradecendo a visita, afirmou:

– Pode ser azar ou sorte!

Passada uma semana, apareceu o cavalo que tinha fugido para a floresta. Com ele, vieram outros cavalos selvagens.

Os vizinhos voltaram a casa do agricultor para o felicitar:

– Tinhas razão. A fuga do teu cavalo não foi uma desgraça, foi uma bênção. Parabéns pela tua sorte!

O agricultor surpreendeu com o seu comentário:

– Pode ser sorte ou azar!

Entretanto, o filho do agricultor dedicou-se a domesticar os cavalos selvagens. Uma tarde, o rapaz foi atirado ao chão por um dos cavalos e fraturou uma perna.

Os vizinhos, solidários, mostraram, outra vez, o seu apoio e levaram presentes para o rapaz:

– Parece que adivinhavas a desgraça do teu filho. É preciso ter azar!

O agricultor limitou-se a dizer:

– Pode ser azar ou sorte!

Pouco tempo depois, rebentou uma guerra no país e todos os rapazes saudáveis foram recrutados para o serviço militar. O filho do agricultor, por ter uma perna partida, foi dispensado.

Os vizinhos, espantados com tudo o que tinha acontecido desde o desaparecimento do cavalo, expressaram a sua satisfação:

– Que grande sorte!

O agricultor, que era um homem prudente, concluiu:

– Não sei se é sorte ou azar! Não devemos tirar conclusões precipitadas. Ninguém pode prever o futuro. A vida é sempre uma surpresa.”, Ramiro Calle, in Os Melhores Contos Espirituais do Oriente

 

Filipe Raposo

Novembro de 2023

 

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