Desapego
A atitude de desapego, despojamento ou largar é a alma da meditação mindfulness. À semelhança do que acontece com outras atitudes fundamentais, o desapego é meta e caminho simultaneamente.
A aprendizagem de largar abre-nos o caminho do contentamento e da libertação.
Ajahn Cha, o mestre da tradição budista Theravada da Floresta, dizia:
“Um pequeno largar… uma pequena felicidade. Um grande largar… uma grande felicidade. Largar por completo… Nirvana!”
Na maioria de nós, existe um hábito profundo na mente de querer “agarrar” pensamentos, emoções e experiências. Quando estes são agradáveis, tentamos que se prolonguem e durem para sempre, e invocamo-los repetidamente. Quando são desagradáveis queremos ver-nos livres deles e lutamos contra eles. No fundo agarramo-nos ao desejo de que mudem ou desapareçam, mas continuamos a investir a nossa atenção e energia neles.
Na meditação mindfulness tentamos adotar uma postura de notar e largar, o que significa que não agarramos nem rejeitamos quaisquer fenómenos percecionados. Não criamos uma identificação com aquilo que observamos e por isso não é criada uma ligação de “eu” ou “meu” face ao que é notado. Ao não tomarmos as perceções como pessoais, não construímos uma identidade e um apego à sua volta.
Notamos um pensamento que surge, e de imediato escolhemos não o alimentar, escolhemos deixá-lo estar e com isso deixamo-lo ir. É importante perceber que isto é uma não-ação, não há aqui um eu a controlar o fluxo de experiência.
A aprendizagem de largar abre-nos o caminho do contentamento e da libertação.
Vamos imaginar que temos um copo de água cheia de purpurinas. Ao inicio a água está agitada e as purpurinas estão distribuidas por toda a água do copo. Quanto mais tentamos forçar as purpurinas a ficarem quietas mais elas teimam em ficar em suspensão. No entanto, se pararmos de mexer no copo, eventualmente as purpurinas irão repousar todas no fundo. Não se pode dizer que controlámos o desfecho. Faz mais sentido considerar que ao não interferirmos, permitimos as condições para que o fluxo da natureza seguisse o seu caminho.
Largar, abrir mão, ou deixar estar, significa permitir que as coisas possam ser tal como são, sem interferirmos ou querermos controlar.
Quando notamos a nossa mente apegada a algo, podemos deliberadamente escolher largar e deixar estar as coisas tal como estão momento a momento, e como consequência o fluxo de experiência segue o seu curso.
Observamos os fenómenos a surgirem e a desaparecerem, e repousamos na própria consciência – esta dimensão que conhece a realidade do momento presente.
Já todos ouvimos falar acerca de impermanência. É mais ou menos fácil aceitar o conceito de forma intelectual. Com a meditação podemos levar este reconhecimento mais longe, de forma a se tornar uma compreensão vivida e realizada. Na meditação mindfulness podemos observar as consequências de nos agarrarmos aos pensamentos, ideias, crenças, histórias, emoções, sentimentos, etc. Mais cedo ou mais tarde, agarrarmos firmemente aquilo que é impermanente, vai criar uma distância entre o que a realidade é, e aquilo que gostaríamos que fosse. Aquilo no qual estamos a basear a nossa felicidade desaparecerá, ou estragar-se-á, ou será afastado de nós, ou perderemos, ou morrerá. O desejo de que as coisas possam ficar connosco para sempre, não está em sintonia com a verdade da natureza e resulta em sofrimento. Importa reconhecer, que na verdade, não há nada para agarrar permanentemente, pois tudo tem a natureza de processo transitório. É tudo um fluxo condicionado.
Trago aqui a metáfora do macaco e da banana, para ilustrar este conceito do apego e sua relação com o sofrimento.
Contam que na India, há uma forma inteligente de apanhar macacos. Abrem um buraco num coco, com um tamanho suficiente para o macaco enfiar a sua mão lá dentro, mas ao mesmo tempo suficientemente pequeno para que não consiga retirá-la se estiver com o punho cerrado. O coco é amarrado a uma árvore e no seu interior é colocada banana para atrair o macaco. O macaco aproxima-se e agarra a banana para a comer. No entanto, percebe que não consegue retirar a mão e fica preso. Para se libertar, bastaria abrir mão da banana. No entanto, na maioria dos casos o macaco não consegue largar e sofre as consequências.
Isto soa-vos familiar? Talvez aquela ideia, aquele plano, aquele sentimento que insistimos em alimentar e não largar, ou aquela posse material?
Por vezes um pensamento sedutor ou insistente visita-nos e ficamos obcecados a ruminar. Parece até que o pensamento traz uma mensagem implícita, de que, se devotarmos ali toda a nossa atenção, poderemos encontrar uma saída, uma solução, alguma segurança, alguma paz, algum contentamento. Na verdade isto é uma ilusão. Este pensamento está a aprisionar-nos, a desgastar-nos e a roubar-nos o “chão” do momento presente, o único lugar em que poderemos de verdade encontrar paz e contentamento.
Precisamos então em primeiro lugar, de notar o que está a acontecer, estabelecer atenção plena (mindfulness) e depois então abre-se um espaço de liberdade para escolhermos largar, deixar estar, deixar ir.
É importante compreender que cultivar desapego, não significa que devemos deixar todas as nossas posses materiais, as relações com as pessoas de que gostamos, ou deixar de nos importar com o que acontece, já que tudo é impermanente e mais cedo ou mais tarde vai desaparecer. Aquilo que a impermanência nos convida, é a desfrutar de forma plena do milagre transitório e incerto da vida. Enquanto as coisas duram, podemos saboreá-las e desfrutá-las, mas sem apego. E então, quando desaparecem, não sofremos por achar que algo errado aconteceu, algo que não era suposto.
É a diferença entre agarrar firmemente algo de mão cerrada, ou segurar algo na palma da mão aberta.
O mestre budista anteriormente citado, Ajahn Cha, dizia que gostava muito do seu bule de chá. Desfrutava plenamente dele sem apego. Ao olhar para para o bule, conseguia contemplar os cacos em que se tornaria um dia. Talvez caísse ao chão inadvertidamente por descuido. Certo é que a sua mente, não iria considerar que algo de errado acontecera, pois era da natureza do bule quebrar-se e deixar de existir.
Há uma série de processos da vida que nos mostram como precisamos de largar e confiar. Por exemplo, o ato de dormir, ou o ato de respirar, ou até o ato de morrer.
Já todos passámos pela experiência de ficarmos agarrados a um pensamento, insistentemente ruminando à procura de “saídas para o labirinto”, não conseguindo deixar-nos dormir. Dormir requer uma entrega, uma rendição e uma confiança.
A respiração também é uma boa metáfora para este desapego. Por mais que queiramos controlar o processo e suster o ar que inalámos, mais cedo ou mais tarde vamos ter que largar e deixar ir, restabelecendo o fluxo. É por isso que a respiração é um objeto de meditação com tanto potencial. É um processo que pode ocorrer sem a nossa intervenção, de forma natural, e ao mesmo tempo também podemos controlar o processo intencionalmente.
A respiração é dinâmica e permite-nos observar a impermanência, com o inicio, a duração e o fim de cada inspiração e expiração.
Então quando meditamos atentos à respiração, podemos aprender muito só a observar, sem tentar controlar ou interferir com o processo.
Já a morte é sem dúvida o grande convite a largarmos tudo. As nossas posses, as nossas relações, a nossa identidade, o nosso corpo e até a própria existência. É por isso que aprender a morrer, implica aprender a viver, com desapego.
Termino este texto com mais um conto que ajuda a ilustrar o conceito do desapego.
Conto – Doze Anos Preso
Um país entrou em guerra e dois jovens amigos foram convocados. O inimigo derrotou a sua tropa e foram feitos prisioneiros e levados para um campo de concentração. Estiveram presos durante dois anos. Quando foram postos em liberdade, cada um deles foi para um lado do país para refazer as suas vidas.
Dez anos depois encontraram-se, e um perguntou ao outro:
– Lembras-te dos nossos carcereiros?
O amigo respondeu:
– Sim. Não deixei de odiá-los nem um único dia.
O outro disse:
– Olha, eu, desde que abandonei o campo de concentração, nunca mais voltei a pensar neles. Portanto, amigo, eu estive preso dois anos e tu estás preso há doze.
Texto escrito em Março 2024
Filipe Raposo