Durante 17 dias o mundo inteiro susteve a respiração e acompanhou a operação de resgate de 12 crianças e do seu treinador, presos numa gruta da Tailândia. O momento da morte de um dos mergulhadores da marinha Tailandesa e a iminente subida de água na gruta intensificaram ainda mais o drama.
A imprensa e os media mostraram-nos todos os desenvolvimentos, incluindo a história de cada um dos resgatados e os momentos heroicos da equipa de salvamento. A Tailândia disponibilizou para a operação todos os meios técnicos e financeiros. De todas as partes do mundo vieram mensagens de encorajamento. Vieram monges budistas para dirigir as suas melhores intenções. Vieram especialistas internacionais em espeleologia, salvamento e mergulho técnico. Até o bilionário Elon Musk disponibilizou os seus vastos recursos e em tempo record construiu um minissubmarino (que não chegou a ser necessário) para retirar as crianças.
O resgate dos 17 elementos acabou por ser um sucesso, e, o mundo inteiro suspirou de alivio, numa espécie de catarse colectiva. O melhor do ser humano revelou-se na coragem, determinação, esperança, amor e compaixão. Estas qualidades ressoaram em todos nós. Por momentos renovámos a nossa fé num mundo mais justo e altruísta.
A pergunta que me surgiu foi: O que é que nos impede, dentro dos nossos meios como indivíduos ou como colectividade, de encetar todos os esforços para salvar ou melhorar a situação desesperante de tantos milhões de pessoas neste mundo.
Neste preciso momento há milhões de pessoas presas em redes de tráfico humano, escravidão, prostituição, sem tecto e sem o que comer, a fugir de guerras, genocídios, perseguições, tortura, violência.
Porque é que não há uma gigantesca operação de salvamento em curso? Onde estão as manifestações, as vigílias, os bilionários a disponibilizarem meios? Porque é que o sofrimento de milhões de seres humanos não nos toca no coração?
Para tentar responder a estas questões, fui olhar um pouco para o que a espiritualidade e a ciência podem dizer acerca da nossa natureza humana.
Parece-me que o velho conto Cherokee resume bem este nosso impasse. Conta este conto que um velho índio está a ensinar ao seu neto coisas da vida. “Há uma luta sempre a decorrer dentro de mim” – disse ao neto. “É uma luta feroz entre dois lobos. Um é o lobo do ódio – ele tem agressão, inveja, angustia, ganância, arrogância, culpa, ressentimento, falso orgulho, superioridade e ego.” E continuou, “o outro é o lobo do amor – ele tem alegria, paz, amor, compaixão, esperança, generosidade, benevolência, empatia e fé.” Dirigindo-se ao neto disse-lhe, “a mesma luta agita-se dentro de ti, e dentro de cada pessoa também.” A criança pensou nisto por um minuto e perguntou ao seu Avô, “Qual o lobo que vencerá?”. O velho Cherokee respondeu simplesmente, “Aquele que alimentares.”
É preciso ter a humildade de reconhecer que temos em nós estas duas facetas. Ambas foram essenciais para a nossa jornada evolutiva. A ciência aponta para o facto, de que o ambiente de escassez de recursos dos nossos antepassados hominídeos, levou a intensa competição e a violentos conflitos entre diferentes tribos, o que por sua vez favoreceu a evolução do altruísmo e a cooperação dentro da própria tribo [1]. De certa forma pode-se dizer que o lobo do ódio ajudou ao nascimento do lobo do amor.
É a faceta do lobo do amor que nos move para o altruísmo e para o cuidado do outro. Alimentarmos o lobo do amor requer autoconhecimento, trabalho e o cultivar de uma perspectiva sábia. A ciência dá-nos algumas pistas acerca dos mecanismos que alimentam o nosso lobo do amor.
Similaridade
Na Primeira Guerra Mundial, os britânicos e os alemães estavam a lutar uma longa e sangrenta guerra de trincheiras perto de Ypres – Bélgica. Na véspera de Natal, os britânicos avistaram luzes através dos binóculos, e, depois, começaram a ouvir canções de Natal. O que se sucedeu foi inacreditável. Os homens saíram das trincheiras e começaram a festejar juntos, a beber e comer, a trocar lembranças e a mostrar fotografias de família. Estes eram homens que no dia anterior se estavam a tentar matar uns aos outros. Isto ocorreu porque se deixaram de ver como Britânicos e Alemães, mas sim como Cristãos. Este evento ficou conhecido como: A trégua da véspera de Natal.
Como é que o nosso cérebro decide quem é merecedor da nossa benquerença e compaixão?
O que os estudos parecem apontar, é que a nossa mente usa uma métrica muito simples: a semelhança [2], [3].
Parece ser que o sofrimento percepcionado noutra pessoa, e, a capacidade de compaixão que se lhe segue, não é determinada pelos factos objectivos do que está a acontecer, mas pelo olhar do observador. Não é a gravidade da tragédia ou sofrimento que determina o grau de compaixão, mas sim até que ponto nos revemos nas vitimas ou não. Isto sugere que a nossa moralidade é flexível.
Isto também sugere uma nova via para fomentar a compaixão. A compaixão não tem que vir do topo para a base – fazendo o esforço de tentar ser bons refreando impulsos – mas pode ser fomentada da base para o topo, de uma forma mais natural, dando ênfase às semelhanças e esbatendo as diferenças entre indivíduos. O treino contemplativo é uma das formas de cuidarmos desta relação que estabelecemos connosco mesmos e com os outros. Daí pode surgir um olhar que tendencialmente nota muito mais o que nos torna semelhantes e próximos, e não tanto o que nos afasta. É como que um gradual desmontar da dualidade: nós e os outros.
A Compaixão não está nos Números
Está comprovado que sentimos maior empatia e compaixão por um individuo ou um numero reduzido de indivíduos identificáveis, do que por um numero muito grande de indivíduos que se tornam uma massa de pessoas anónimas, indistintas, ou um número abstracto [4], [5]. É a nossa inabilidade para compreender números e relacioná-los com a tragédia humana em larga escala que incapacita a nossa vontade de agir. As estatísticas, não interessa quão grandes são os números, não conseguem dar-nos o verdadeiro significado de uma tragédia. Os números por si só, não desencadeiam a resposta emocional afectiva necessária a motivar a acção. As estatísticas parecem anestesiar o afecto. Nas experiências do psicólogo Paul Slovic, as doações de determinados sujeitos com vista a ajudar uma criança faminta em África caíam acentuadamente quando a imagem da criança era acompanhada com informação acerca dos milhões de outras crianças necessitadas como ela [6].
Um exemplo concreto: A tragédia pessoal de Anne Frank desperta-nos mais compaixão do que o facto de terem morrido cerca de 6.000.000 de judeus no Holocausto nazi.
Elevação Moral ou Altruísmo Contagioso
A elevação moral é aquele sentimento caloroso, nutridor e mobilizador, que experimentamos quando vimos outra pessoa a realizar actos de bondade humana, gentileza, coragem ou compaixão. Este sentimento leva-nos a querer ajudar outras pessoas e faz-nos querer ser melhores seres humanos, daí o altruísmo ser literalmente contagioso. O que os estudos científicos confirmaram, foi que este sentimento de excitação faz com que as pessoas sintam vontade de agir altruisticamente no relacionamento com os outros; altera drasticamente as crenças acerca da humanidade de uma forma mais optimista reacendendo a esperança num mundo melhor; e leva as pessoas a definirem objectivos mais elevados para si mesmas [7], [8], [9]. O facto de respondermos de forma tão notória a acções altruístas praticadas por outros – mesmo quando não nos beneficiam directamente – é um indicador muito importante da natureza humana. É maravilhoso verificar como estes sentimentos por vezes inspirados de forma indirecta por figuras de um altruísmo excepcional como Jesus Cristo, o Buda, Ghandi, etc, nos podem levar a rever a nossa conduta, os nossos valores e propósito de vida, como se fosse apertado o botão de “reset” apagando sentimentos de desconfiança, indignação e cinismo, e, substituindo-os por sentimentos de esperança, amor, optimismo e inspiração moral. Isto revela como apesar de as figuras desta dimensão moral serem uma raridade, o seu impacto poder ser tão alargado e transformador no mundo.
No salvamento da gruta na Tailândia, esta empatia e benquerença que ressoou na maioria de nós, emergiu em parte destes três mecanismos. A mediatização da tragédia transformou estes 17 indivíduos, de um número abstrato, de rostos anónimos, a seres humanos com histórias semelhantes às nossas. Sentimo-nos literalmente presos naquela gruta. Os gestos altruístas das pessoas que arriscaram a vida no salvamento, tocaram na nossa melhor faceta e trouxeram ao coração o nosso lobo do amor.
A cultura que fomos construindo, conta ainda muito uma história de separação, disputa, conquistas bélicas, nacionalismos, uma história de “nós” contra os “outros”. Acredito que poderá chegar um dia, em que o circulo do “nós” transcenderá todas as fronteiras, hinos, religiões e diferenças, e a nossa tribo não deixará ninguém de fora. Um dia em que quem sabe, o sonho de John Lennon se poderá cumprir.
Filipe Raposo
Texto escrito em Julho de 2018
Foto: ThaiNavySEALs