“Não entres tão docilmente nessa noite meiga,
Que a velhice arda e se enfureça com o término do dia;
Clama, clama contra o esmorecer da luz…”, excerto do poema de Dylan Thomas
O poeta Dylan Thomas escreveu este poderoso poema como um grito de revolta, perante a velhice que ia debilitando o seu Pai, quando este estava prestes a perder a visão.
Cerrar fileiras contra a doença, a velhice e a morte, é declarar guerra também à vida, o que talvez não seja a melhor postura existencial a assumir. No entanto, há aqui um grito de transcendência que vale a pena escutar. Estas palavras exaltam a vida que habita em cada um de nós, e, interpelam directamente o instinto que quer lutar mais um round, o peito que quer sorver mais uma lufada de ar.
Este poema é fole que aviva as brasas do espírito humano. Por entre as cinzas inertes iluminam-se inúmeras centelhas cuja luz se eleva ao Olimpo.
O homem é o único ser vivo, que, muito cedo na sua vida toma consciência de que vai morrer. O homem é o único ser vivo que se confronta com todas as vidas que descarta, com todas as possibilidades que morrem de cada vez que faz uma escolha.
Por que é que ainda assim os deuses da mitologia grega nos invejavam? Precisamente por a nossa vida ser tão frágil e a nossa existência tão curta, e, ainda assim termos a audácia de não esmorecer. Cada momento de coragem e resistência face a probabilidades difíceis, cada gesto de elevação moral é um acto heróico que nos eleva ao patamar dos deuses.
Este texto fala pois desta possibilidade de assumirmos a nossa vida e os nossos desafios como uma jornada heroica. Fala de dar resposta à necessidade essencial de nos sentirmos empoderados, de sermos os autores da nossa vida, e, de caminharmos em direcção à maturidade, à inteireza e à livre expressão de todo o nosso potencial.
Desde pequeno que sinto um enorme fascínio pelos filmes e romances épicos e de aventuras. Em especial, por todas as histórias que se centram num herói que percorre um caminho de transformação (Senhor dos Anéis, Guerra das Estrelas, Matrix, Dune, etc).
Ao tomar contacto com a obra de Joseph Campbell, entendi o porquê desta atracção pelo tema do herói. No livro “O Herói de Mil Faces”, Campbell propõem-nos que todas as jornadas heroicas são na realidade uma só, a mesma aventura épica que a humanidade tem contado desde há milhares de anos – A Jornada do Herói, ou o mono-mito.
Todas as jornadas de heróis partilham um tema, uma estrutura e um simbolismo semelhantes, ainda que estas histórias sejam de culturas por vezes separadas no tempo e no espaço. Carl Jung e Joseph Campbell sugerem que estas semelhanças se devem a temas mitológicos e símbolos com origem no domínio da mente designado de inconsciente colectivo.
Sendo uma manifestação das profundezas do inconsciente, Campbell considera que os mitos vêm revelar verdades intemporais acerca dos anseios, medos e aspirações da humanidade. Os mitos têm servido um propósito ao longo dos tempos, como guia no processo de maturação e desenvolvimento psicológico. A jornada arquetípica do herói, é acerca da perda da inocência e da entrada na maturidade.
Na jornada do herói, um personagem comum é confrontado com um desafio e é atirado, ou aventura-se, para uma situação ou local extraordinário e desconhecido. Campbell refere que isto simboliza a passagem do consciente para as regiões desconhecidas e não cartografadas do inconsciente onde estão os potenciais internos por descobrir. Aí o herói encontra forças de oposição fabulosas, mas no processo de superação de obstáculos surgem novas verdades e momentos de revelação e êxtase. A pessoa (ou a crença/perspectiva) que anteriormente existia, começa a desintegrar-se para surgir alguém mais inteiro e alinhado com a intuição. Deste renascimento surge um novo recurso, ou propósito, através de um potencial anteriormente não realizado, que corresponde a uma expansão de consciência. Por fim o herói regressa ao seu mundo original, já não sendo a mesma pessoa. Toda a jornada e provas que enfrentou transformaram-no. O caminho desejável é aquele em que o sujeito regressa e encontra o seu próprio espaço e voz no mundo. Um espaço em que pode nutrir e desenvolver o seu potencial e oferecer o seu trabalho aos outros sem expectativa de aplauso ou medo de rejeição. Ao conseguir isto o sujeito terá encontrado o seu caminho singular de felicidade e a sua vida terá seguido o fio deixado para trás pela jornada do herói.
Nas palavras de Campbell: «Penso que uma boa vida é uma jornada de herói seguida de outra. Uma e outra vez és chamado ao reino da aventura, és chamado para novos horizontes. De cada vez, o mesmo desafio: Atrevo-me? E então, se te atreves, os perigos estão ali, e a ajuda também, na plenitude e no fiasco. Há sempre a possibilidade de fiasco. Mas também há a possibilidade de felicidade…
…Não estamos na nossa jornada para salvar o Mundo mas para nos salvarmos a nós mesmos. Mas ao nos salvarmos, salvamos o Mundo. A influência de uma pessoa vitalizada, vitaliza o Mundo».
A jornada do herói desafia-nos a estarmos atentos ao nosso coração, a reconhecermos os momentos da nossa vida em que somos chamados para a aventura. A resposta a este chamamento requer a coragem suficiente para penetrar no nosso labirinto interior. Coragem, não para derrotar o minotauro, mas para fazer as pazes com ele. O minotauro é o guardião da uma parte de nós que está ferida emocionalmente. O minotauro guarda uma parte de nós que está orfã. Em algum momento da nossa vida este minotauro salvou-nos. Há que honrá-lo para depois então o libertar.
No centro do nosso labirinto aguardam por resgate inúmeros pedaços que gritam tudo o que podemos ser. Cada pedaço, um órfão dos desencontros da vida, uma necessidade que não foi atendida, ou um potencial que ficou na escuridão.
O caminho é repleto de desafios, mas levamos connosco a herança de toda a humanidade – o património da vida, amealhado desde a alvorada dos tempos. A cada passo heróico, a cada grito de revolta face à adversidade, os nossos antepassados ataram mais uma meada no fio de Ariadne que nos irá conduzir de volta à luz. Cabe-nos apenas seguir o fio da jornada do herói…
“A Jornada do Herói
Não precisamos sequer de nos aventurar sozinhos
Pois os heróis de todos os tempos foram antes de nós.
O labirinto está completamente desvendado…
Cabe-nos apenas seguir o fio da jornada do herói.
E onde julgávamos encontrar uma abominação
encontraremos um Deus.
E onde julgávamos que iriamos derrotar um outro
derrotaremos a nós mesmos.
Onde julgávamos que viajaríamos para fora
chegaremos ao centro da nossa própria existência.
E onde julgávamos vir a estar sós
estaremos na companhia de todo o mundo.”, Joseph Campbell
Filipe Raposo
Texto escrito em Maio de 2017
Foto de Serge Kutuzov em Unsplash